Manual Orgânico
Helena Lapas
Entrada Gratuita
“Manual Orgânico” plasma uma visão antológica do trabalho da artista Helena Lapas: com obras que vão de 1967 até ao presente, assinala-se assim uma presença absolutamente singular no nosso contexto que, como não deixa de ser hábito, é propício a obliterações negligentes no caldo da previsibilidade que o caracteriza.
Com uma exposição individual na Galeria Diário de Notícias em 1968, Helena Lapas viria a ser mais tarde a primeira aluna da ESBAL a apresentar uma tese em tapeçaria.
A propósito dessa exposição o historiador Manuel Rio de Carvalho escreveu um texto intitulado Lena Lapas ou a modesta intimista monumentalidade onde afirmava: “Foi pela tapeçaria que se processou a abertura psicológica de Lena Lapas. A sua tomada de posição crítica sobre qualquer realidade é sempre feita através da tapeçaria, quer seja a pintura do Quattrocento, a arquitetura barroca, o habitat dos bairros e periferia, as tascas de Ericeira, a própria vida e ela própria. […] Obras mais portáteis que as pinturas de cavalete (vantagem a assinalar numa época em que as mudanças são muito frequentes), conservam a monumentalidade do fresco. Monumentalidade no acentuado jogo forma-fundo, na relativamente grande escala, mas conjugada com um grande sentido intimista e modestos meios de execução.”
Acertadas palavras que caracterizam com assertividade um dos aspetos fundamentais desta obra, que se inscreve na tradição milenar da tapeçaria mas que a reatualiza em percurso iconográ- fico, que tanto bebe imediatamente de um certo ar do tempo (creio detetar laivos de psicadelismo nas obras de fim dos anos sessenta e inícios dos anos setenta), como abre para universos icono- gráficos que poderiam ser reclamados por jovens artistas do presente nas suas especulações sobre o ambiente e a relação do ser com a natureza.
Há uma dupla tensão nas propostas de Helena Lapas, atestável com cristalina clareza nesta ex- posição. Por um lado, um sentido primordial do telúrico, da pertença à terra, ao solo, à existência mediada por plantas, animais, rostos/máscaras e paisagens imaginadas na abstração represen- tativa. Por outro, um redireccionamento ontológico para o intangível, com asas, portas, colunas e paisagens.
É já nos anos dois mil que Helena Lapas abre uma nova entrada no seu corpo de trabalho, até aí essencialmente virado para a tapeçaria e o laborioso e detalhista trabalho em patchwork. As es
culturas, invariavelmente de dimensão reduzida (à escala de um trabalho de proximidade com as suas mãos) são elementos de uma estranheza fossilizada. Como se de peças desenterradas depois de um tempo imemorial, em cruzamento de referências geográficas e culturais, onde cabem os aztecas, a lembrança africana e o hoje. Sim, o hoje onde a passagem do instante imediatamente se torna memória ambígua de um presente desusado. Totémicas, estas presenças elevam-se na convencionalidade da relação obra/plinto, assim desmascarando uma intencionalidade no seu jogo perante o visível que, se desterritorializada, poderia imiscuir-se com o natural enquanto ficção tridimensional.
Esta é, no seguimento de uma linha de trabalho no interior do ciclo de programação a vida, apesar dela, uma exposição que tal como a de Fernando Lanhas ou António Palolo pretende dar o devido ênfase a autores que me parecem cruciais nas determinações atuais de muitos autores mais novos. São alimentos para um pensamento mais estruturado sobre a nossa história da arte e, no caso presente, exemplos de uma inscrição notável no fluir do presente.
Numa sociedade que ao contrário do que apregoa com cinismo estratégico ainda vive mais confortavelmente com a novidade e o brilho fugaz das pseudo-ruturas, importa reconhecer a frescura de quem se dedica na sua intimidade monumental, para retomar as palavras anteriormente citadas, a reconsiderar as linhas de continuidade surpreendentes e, essas sim, revigorantes.
Miguel von Hafe Pérez.
©Helena Lapas